quinta-feira, 27 de julho de 2006

Don (Thomas) Hampson

Para alguns revivalistas mais ortodoxos, os maiores intérpretes do papel titular da ópera Don Giovanni, de Mozart, provêm de Itália. De facto, Pinza, Siepi, Gobbi, Raimondi e Furlanetto figuram entre os mais destacados cantores líricos italianos que deram corpo e voz ao Dissoluto Punito.

Não obstante, pela parte que me toca, considero que a lírica anglo-americana tem dado cartas, no tocante a protagonistas de
Don Giovanni.

Senão, vejamos: desde os anos 1980, quantos intérpretes de relevo desta ópera provêm da Grã-bretanha e / ou do Novo continente?

De cor, cito Thomas Allen, Samuel Ramey, Thomas Hampson, William Shimmel, Rodney Gilfry, Simon Keenlyside e Bryn Terfel. Nem mais, nem menos!

(TELDEC 2292 - 44184 - 2 )

A raison d´être desta constatação prende-se com o Don Giovanni da ópera homónima de Mozart, d´après Harnoncourt, Thomas Hampson, de sua graça.

Parti para a audição desta interpretação com reservas.
No computo geral, apesar de algumas agradáveis surpresas - Hampson e Scharinger -, as reservas mantiveram-se - Harnoncourt, Gruberová, Blochwitz, Bonney, e Polgár, para não mencionar Alexander.

Comecemos pela glória desta proposta.

Lírico e teatral qb, nesta interpretação, Hampson compõe um Don Giovanni esplêndido, circunstância que, do meu ponto de vista, constitui o maior argumento - quiçá o único verdadeiro - em favor da aquisição desta mesma interpretação.

Hampson impressiona, desde logo, pela clareza e elegância da dicção, plena de estilo. O italiano é primoroso: melódico, seguro e fluente. A qualidade e nobreza dos recitativos, nos últimos anos, apenas tem como rival Thomas Allen (PHILIPS, Marriner).

Thomas Hampson é um barítono lírico, formado na escola do
lied. Foi educado no respeito pela palavra, ensinado a senti-la, antes de a emitir Trata-a com invulgar delicadeza e apreço. O resultado não podia ser outro: um dos mais extraordinários Don Giovanni - diseur que conheço!
No tocante à caracterização, o cantor explora com eficácia a dimensão vil da figura, sempre na linha da elegância - Terfel, nos antípodas desta caracterização, opta pelo rasca, com notável eficácia.

Indubitavelmente, o Don de Hampson tem linhagem, educação a rodos, tanto quanto canalhice e sedução.
Enfim, um verdadeiro protagonista, em torno de quem toda a trama gira, coisa algo rara, desde Siepi e Allen!

Outro dos pesos-pesados deste
Don Giovanni é Anton Scharinger, cujo Masetto transcende a habitual modéstia da personagem! Canta um Ho Capito de sonho, como jamais escutei! Não admira que, anos depois, Harnoncourt o tenha convidado para Fígaro (TELEC).

Quanto ao resto do elenco, poucos são os pontos de interesse.

Gruberová, apesar da convicção do
Crudele - Ah No, mantém a sua obsessão perfeccionista pela coloratura - que é exímia nunca é demais sublinhar -, negligenciando outros aspectos estruturais da figura de Donna Anna.

Qual Sutherland, compõe uma personagem luminosa na voz, mas algo neutra na leitura dramática. Ambas abordaram Mozart pela via errada, viciadas e presas que se encontravam aos quesitos belcantistas. Que pena!

Alexander canta uma Elvira convencional, na interpretação, com evidentes limitações vocais - estridência, falta de extensão e flexibilidade, timbre grosseiro e vulgar.

É sabido que Barbara Bonney veio a ser uma das mais carismáticas intérpretes mozartianas da década de 1990 - Susanna, Pamina, Zerlina, todas elas gravadas sob a direcção de Harnoncourt (TELDEC).

Apesar da indiscutível beleza da voz - cristalina e ágil -, Bonney desenha uma Zerlina demasiadamente pura, dócil e apagada. Diria que lhe falta
endurance mozartiana, que veio a adquirir perto dos quarenta anos.

O Leporello de Polgár seria magnífico, não fora a excessiva seriedade! Falta-lhe ironia, malícia e cinismo.

Blochwitz - outro dilecto do maestro holandês - compõe um Otávio hesitante e inseguro, muito aflito com as vocalizações.

Quanto a Harnoncourt, dirige com convencionalismo.
Diria que a sua proposta não vinga, deixando a desejar.

É certo que, à semelhança de Gardiner, este maestro criou um núcleo duro de cantores que, sob a sua direcção, interpretou parte da mais célebre lírica mozartiana -
As Bodas de Fígaro e A Flauta Mágica, além de Don Giovanni; falo de Gruberová, Blochwitz, Bonney, Hampson, Polgár e Scharinger, todos eles integrando o elenco da presente interpretação. Ainda assim, falta harmonia, coesão, sentido dramático e identidade a este conjunto de artistas, sendo esta falha, em grande medida, imputável a Harnoncourt.

Pessoalmente, não hesito em manifestar as minhas reservas diante das propostas líricas de Nikolaus Harnoncort, quando de Mozart se trata.
A presente gravação vem corroborar esta minha impressão, pese embora a exímia prestação de Thomas Hampson - vocal e artística - para além de um ou outro mérito.
Dito isto, fiel e paciente leitor, se busca um protagonista paradigmático, não hesite: Hampson é "do melhorio"! Quanto ao resto, o risco é seu!

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